sexta-feira, agosto 22, 2025

O Rompimento da “Bolha Social” a partir da Adoção de Crianças Pretas

O fato ocorreu em Morro de São Paulo, Bahia, durante as férias da família, quando uma senhora confundiu o filho da apresentadora com um funcionário do hotel.

No último dia 29, a apresentadora Astrid Fontenelle experimentou o que chamo de: “O
fenômeno do rompimento da ‘Bolha Social’ a partir de um corpo preto infantil presente
numa família de pessoas brancas”.

A apresentadora é mãe de Gabriel Fontenelle, um adolescente negro de 14 anos que foi
adotado quando criança. E, como mãe, naturalmente, ama seu filho, porém nenhum
amor pode evitar o alcance cruel dos tentáculos do racismo estrutural.

Pessoas com um nível social/financeiro elevado, geralmente só mantêm relações de
poder com pessoas pretas: funcionários, empregadas; motoristas; babás; zeladores;
jardineiros ou faxineiras.

A falta de oportunidades e a forma desigual a que essas pessoas são submetidas sempre
foi considerada “natural”, ao ponto de suas dores serem interpretadas, pela falta de
argumento, chamado de mimimi.

Mas, quando uma criança preta se torna um membro da família, essa forma “natural”
fica fragilizada, podendo se desmontar e cair por terra, pois os pais poderão acabar
experimentando as agruras e dores do racismo a qualquer momento.

E o fato ocorreu em Morro de São Paulo, Bahia, durante as férias da família, quando uma
senhora confundiu o filho da apresentadora com um funcionário do hotel.

Essa confusão está intrinsecamente ligada à construção histórica do Brasil, à ideia de
que pessoas pretas são descendentes de escravos, portanto, serviçais. Além disso,
mesmo no pós-escravidão, a imagem dessas pessoas nos meios de comunicação sempre
foi retratada de forma pejorativa, caricata, subalterna, miserável ou perigosa, reforçando
que pretos são menos importantes, logo, não tão humanos assim.

Na construção do imaginário social, a cor está sempre associada ao pecado, ao erro e à
maldade, o que é bem diferente da imagem construída em torno de pessoas brancas que
são retratadas como bondosas, caridosas, conciliadoras e angelicais, sendo nítido nos
exemplos religiosos: os anjos sempre brancos e os demônios, pretos.

E isso não se dá somente em telenovelas, mas diariamente nos meios de
telecomunicação sensacionalistas que pretendem induzir a sociedade ao “justiçamento
popular”, tendo como alvo cidadãos pretos/pardos e, como resultado, inúmeras chacinas
dessa população pobre e periférica incluindo, atualmente, até mesmo as crianças.

A senhora que confundiu o filho de Astrid com um serviçal do hotel, assim como boa
parte da sociedade, erroneamente enxerga pessoas pretas como cidadãos de “segunda
categoria” ou inferiores aos demais e, desconstruir essa imagem se faz urgente, vez que
uma convivência social mais harmônica, mais igualitária e menos violenta é salutar para
toda a sociedade.

Mas, para “escurecermos” os fatos e comprovar a forma como somos vistos pela
sociedade, um bom exemplo é: uma criança preta sozinha na rua e uma criança branca
na mesma condição. Naturalmente, haverá comoção social para entender o motivo da criança branca estar sozinha, mas o motivo da criança preta cai no desinteresse público,
por ser encarado como algo rotineiro, ou seja, crianças pretas são menos importantes,
menos humanas. “Pode ser tão somente mais um pedinte morto de fome”.

E essa forma diferenciada de encarar as realidades das crianças brasileiras,
independentemente, de cor ou origem, fere diretamente o art. 227 da CF/88 que diz que
crianças e adolescentes devem ser protegidos pela família, sociedade e o Estado.

A pauta da Luta Antirracista se encaixa nesse contexto sendo peça fundamental que
surge com a finalidade de romper com o preconceito racial em suas várias formas e
setores, pois a principal demanda de pessoas pretas no Brasil sempre foi o direito de
existir como ser humano e de se afastar da condição de mercadoria.

Mas, voltando ao assunto, nenhuma maternidade deve ser romantizada, e no caso da
maternidade por adoção não é diferente, mas, principalmente, nas adoções interraciais
que são as mais realizadas no país.

Os desafios de qualquer forma de adoção se desdobram no pós-adoção, quando o
processo já findou fora da presença e olhos do juízo da vara da infância e da juventude.
No entanto, o desdobramento das adoções interraciais é bem mais complexo, vez que
começa quando a criança passa a frequentar a escola, o clube e, no caso em tela, quando
o menino era hóspede do hotel.

A inevitável exposição da criança ao racismo acaba por levar a família adotiva a
experimentar o sofrimento que, para pessoas pretas, é diário.

Apesar da mídia ter noticiado a justa indignação de Astrid, quem mais sofreu com o fato
foi o menino, pois foi para ele que a senhora se dirigiu pedindo um colchonete,
confundindo-o com um trabalhador do local.

E nas adoções interraciais, infelizmente, isso é muito comum, a criança quando começa
a ter uma maior compreensão da sua realidade, passa a perceber o tratamento recebido
na escola e nos locais frequentados por seus pais e familiares.

Chega um momento em que a criança percebe que as pessoas que se sentam à mesa se
parecem com os seus pais e amigos, ao mesmo tempo que as pessoas que servem e
executam trabalhos subalternizados se parecem com ela. E com essa percepção,
algumas crianças adoecem, sofrem ou ficam confusas.

Apesar dos grupos de apoio à adoção considerarem o tema como uma questão superada
pelo entendimento de que crianças pretas nem sempre são preteridas nos processos de
adoção e que não há preconceito dos adotantes em relação à essas adoções, não é esse o
ponto que pretendemos discutir ou apontar.

O assunto não se esgota com o fim do processo, muito pelo contrário, se inicia. Por isso,
precisa ser debatido e tratado honestamente com as famílias adotivas.

O fato é tão devastador que existem famílias que, acreditando que conseguirão proteger
seus filhos do racismo, preferem mascarar a realidade colocando “uma pedra em cima
do assunto” o que, definitivamente, não ajuda, pois, o problema ainda estará lá e em
todos os lugares da sociedade, é real e estrutural.

Então, os grupos de apoio à adoção têm um importante papel, o de construir, em
conjunto com profissionais de outras áreas e, também, junto de ativistas do Movimento
Negro
um trabalho multidisciplinar específico quanto ao tema. Trabalho que poderá ser
realizado a partir de atividades lúdicas, recreativas e coletivas com as famílias através
de palestras, indicações de livros e filmes que abordem o tema e exaltem a beleza negra,
construindo assim o fortalecimento da autoestima dessas crianças.

Os pais, por sua vez, devem lançar mão de todas as ferramentas para o fortalecimento
da autoestima de seus filhos, buscando até mesmo, se for o caso, a ajuda de
profissionais especializados na área da psicoterapia.

A sociedade, por sua vez, precisa entender que, com base na dignidade da pessoa
humana, todas as crianças têm o direito à felicidade, que qualquer forma de violência
direcionadas à elas, como exposição ao racismo, significa sofrimento, portanto, deve ser
repudiado e combatido.

Brasil, Rio de Janeiro, terça-feira, 17 de agosto de 2021

Angela Borges Kimbangu

Colaboração Nicole Makiadi

Esse post representa a opinião do colunista e não necessariamente a opinião do Kpacit.

Últimas Notícias

Em Destaque

Escolhas do Editor

Artigos Relacionados

Secret Link